quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Auditor Fiscal como Assistente Técnico de Perícia no CPC

Com alguma freqüência auditores fiscais da Receita Estadual do Paraná recebem a determinação de realizar tarefa de assistente de perícia ( assistente técnico ) judicial, instituição processual civil do artigo 421, § 1º, inciso I, do CPC1, conseqüência de uma espécie de acordo entre a Coordenação da Receita do Estado e a Procuradoria Geral do Estado. Este acordo foi realizado, se engano não há, ainda no primeiro governo Lerner.

Quando recebi a minha primeira incumbência de assistente de perícia, contestei a ordem veementemente a uma procuradora de estado, ponderando, na oportunidade, que essa tarefa era estranha à atividade TAF, disciplinada ainda sob a Lei 7051/78 e que devido a isso faria se entendesse correto. Recebi da doutora o rótulo de polêmico, pois o assunto não era para tanto.

Tempos mais tarde, um colega indicado como assistente de perícia, não produziu o seu relatório2 depois da entrega do laudo do perito, não teve prévio conhecimento do mesmo, e porque não se intima o assistente pois é ônus da parte ( é indicação desta, portanto ) cientificá-lo da juntada do mesmo aos autos e respondeu disciplinarmente por isso.

Assim, este texto é uma pequena reflexão para se identificar se é possível, já no campo da normalidade jurídica, atribuir essa tarefa ao auditor fiscal e as possíveis conseqüências em exigir-se do auditor fiscal tarefa estranha a sua atividade. É o que me proponho.

O assistente técnico, como posto no CPC é instituição de direito processual civil, de livre nomeação da parte como seu auxiliar, portanto, considerado apenas elemento de sua confiança3, pois decorre de relação contratual, e nessa condição tem por obrigação concordar, criticar ou complementar o laudo do perito oficial com base em seu parecer. Assim, o assistente técnico é instituição jurídico-privada de livre nomeação da parte, cuja função consiste na assistência a todas as investigações e operações que executa o perito judicial.

A figura do assistente técnico apareceu no Direito Processual Civil a partir do Código de 1929, artigo 132, que permitia a indicação pelas partes de assistentes técnicos, que poderiam acompanhar os trabalhos do perito e impugnar as conclusões trazidas em seu laudo.

Como não tem o assistente nenhum compromisso com a justiça ( art. 14, IV e ao compromisso genérico do art. 339, ambos do CPC ), não receberá intimação do juiz para se pronunciar sobre o laudo apresentado pelo perito, cabendo à parte retirar do cartório os autos para que o seu assistente possa se manifestar sobre o mesmo, no prazo de 10 ( dez ) dias ( art. 433, parágrafo único, CPC ).

Depois de examinar esses conceitos fica evidente que a natureza jurídica do instituto processual em exame é estranha à atividade do auditor fiscal, ainda que haja entre tais atividades muita estreiteza por conta da coincidência específica de conhecimento requerido por ambas as atividades quando a questão levada a juízo envolver matéria tributária e os instrumentos para a sua exigência. Mas essa coincidência não garante ao Estado-Administração, pelos seus variados órgãos, exigir do servidor auditor que se submeta ao exercício de atividade fora do que prevê a sua lei de regência ( LC 92/2002 ). Se assim for, quebrada estará a regra da dedicação exclusiva e a atividade típica de estado do auditor fiscal mandada água abaixo.

Essa quebra oficial de regra permite deduzir que é para os dois lados, ou seja, em favor do Estado e em favor do auditor. Se do auditor é exigido realizar tarefa estranha à sua atividade de caráter privado em favor do Estado, mutatis mutandis, poderá esse mesmo auditor realizar outras atividades, obviamente lícitas, claro, também privada, para aumentar a sua renda. Parece razoável o exercício dessa imaginação diante dessa “quebra”.

Mantida a regra do auditor fiscal realizar a assistência técnica ou ser assistente de perito, como querem alguns, surge sérios problemas para o Estado-Administração em juízo ( Fazenda Pública ). Sim e a razão para afirmar-se vem da prática do auditor fiscal.

Não raro o auditor fiscal não distingue uma atividade da outra e age na condição de assistente da parte com os poderes de auditor fiscal e assim faz diligências no estabelecimento, intima o contribuinte, realiza averiguações mais amplas, gera relatórios. etc, em desarmonia com equilíbrio da produção de provas entre as partes, porque a fronteira entre um regime jurídico e outro, nesse caso, não é observada, podendo resultar em nulidade ou inutilidade da tarefa se a outra parte o alegar.

Por outro lado, a determinação da Administração ao auditor fiscal em funcionar no processo civil como seu assistente técnico fere o art. 5º, inciso II4, da Constituição Federal, pois não há norma jurídica válida5 que autorize essa exigência, muito pelo contrário, pois a atividade do auditor fiscal é o lançamento tributário e atividades a ele pertinentes, consoante disposições do art. 5º e incisos da Lei Complementar Estadual 92/20026.

Diante dessas observações, é inevitável concluir que há ilicitude no ato do Administrador ao determinar ao auditor fiscal que funcione como seu assistente técnico no processo civil. Não há dúvida alguma em afirmar-se que é ilegal baseado no que foi exposto. Entendo, também, que é necessário levar o caso ao Judiciário através do SINDAFEP de modo a garantir que o auditor seja respeitado e na atividade e para a qual é concursado.

Interessante abordar, já no campo da hipótese, se seria possível punir o auditor fiscal por não ter feito ou participado da elaboração do laudo pericial. O exercício dessa imaginação suscita levantar inúmeras outras hipóteses subjacentes de modo a enquadrar a chamada subjetividade do auditor diante do fato “ausência de laudo técnico” em favor da fazenda pública. Examino a mais “contundente” dessas hipóteses: o auditor se recusa expressamente a fazê-lo ou não faz por omissão mesmo. Nessas condições, pergunta-se, em qual ou quais dispositivos estaria enquadrado o auditor ? No grupo das graves ou das gravíssimas ?

Examinei detidamente as infrações do grupo das gravíssimas ( art. 114 e seus incisos da LC 92/2002) e ali não constatei nenhuma possibilidade de enquadrar-se o “faltoso” auditor nas hipóteses ali descritas, ou nos chamados “tipos legais”. Abro um pequeno parêntese para informar que não constatei naquela seção alguma descrição parecida como “determinar subordinado a executar tarefa que saiba ou deva saber ilegal”, o que vale dizer que o legislador da LC 92/2002 entendeu que somente o auditor subordinado praticará infração. É um absurdo, como diria um conhecido jornalista brasileiro.

No grupo das infrações “deveres”, em pequeno exercício de teratologia jurídica, seria possível enquadrar o faltoso auditor em dois incisos do art.113: “VI – cumprimento das normas legais e regulamentares” e “VIII - eficiência”.

Descarto de plano o tipo “cumprimento de normas legais” porque a infração da hipótese estudada é uma espécie de acordo entre a Coordenação da Receita do Estado e a Procuradoria do Estado. Seria então uma infração a uma norma regulamentar, já que se trata de um acordo entre órgãos de estado ? Aparentemente é o enquadramento mais razoável, mas emerge uma barreira juridicamente intransponível, pois essa norma regulamentar não se encontra lastrada em lei e tampouco na lei de regência do auditor fiscal, o que a torna inexeqüível no plano da coação sob a visão do regime disciplinar correspondente. Nesse desiderato, se norma não há de coação para a prática, não há se falar em dever de eficiência.

Fico a imaginar se alguma comissão disciplinar das muitas hoje em atividade entender que a conduta da hipótese levantada configura-se, de fato, infração funcional e aplica alguma das penas do art. 115 da LC 92/20027 e o caso em seguida levado ao Judiciário. Não tenho dúvida de que seríamos ridicularizados e expostos às mais troças observações.

Diante disso, surge a indagação se há ou não algum instrumento jurídico à disposição do auditor, portanto preventivo, já que há uma aparente lacuna no estatuto, de modo a evitar-se essa coação ilegal. No campo do direito administrativo, o ato determinando ao auditor funcionar como assistente de perícia pode ser suspenso fazendo-se uso das cautelares judiciais cabíveis. Mas isso leva algum tempo para se julgar o mérito e paira a instabilidade pessoal do auditor nesse tempo todo.

Por outro lado, há a possibilidade de trazer o responsável pela ordem ilegal ( mandar o auditor funcionar como assistente de perito ) para o campo da infração penal e administrativa, podendo as penas serem aplicadas cumulativamente8:


Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:

[...]

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;


Ressalto, por óbvio, uma vez provada a infração penal, o auditor poderá ajuizar ação por danos morais e patrimoniais contra a fazenda pública e subsidiariamente contra o autor da ordem ilegal, conforme norma do art.37, § 6º, da CF/889.

É preciso, penso, dar densidade política à tese ( porque a jurídica é fartamente densa ), sem a qual cometeremos todos os pecados da omissão em causa própria. Fiz a minha parte.



Curitiba, outubro de 2005

Dimas Soares, auditor fiscal, bacharel em administração e direito, pós graduado em administrativo, tributário e processual civil ( nenhum promovido pela Coordenação da Receita do Estado- CRE) .

1Art. 421. O juiz nomeará o perito, fixando de imediato o prazo para a entrega do laudo. (Redação dada pela Lei nº 8.455, de 24.8.1992)

§ 1o Incumbe às partes, dentro em 5 (cinco) dias, contados da intimação do despacho de nomeação do perito:

I - indicar o assistente técnico;

2Trata-se de “laudo” do assistente técnico da parte.

3Thoedoro Junior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Editora Forense, 2006, p. 530.

4CF 88, art. 5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei;”

5Convênio entre Procuradoria Geral e Coordenação da Receita do Estado não é o instrumento adequado e válido para atribuir-lhe tal tarefa, somente a lei no sentido estrito é o instrumento válido.

6 Art. 5º Ao Auditor Fiscal compete, privativamente:

I - a constituição do crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível;

II - o julgamento do processo fiscal em primeira instância administrativa, em caráter exclusivo, e em segunda instância, como representante da Fazenda Pública Estadual no Corpo Deliberativo do Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais, conforme dispuser a lei;

III – o exercício da função de representante da Secretaria de Estado da Fazenda, no Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais, conforme dispuser a lei;

IV – o exercício das demais funções inerentes à Tributação, Arrecadação e Fiscalização de tributos estaduais e delegados;

V - a requisição, o acesso e o uso de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas, quando houver procedimento de fiscalização em curso e quando os exames forem considerados indispensáveis, em conformidade com legislação específica, que estabelecerá procedimentos para preservar o sigilo das informações obtidas.


7 Art. 115. São penas disciplinares:

I - repreensão;

II - suspensão;

III - demissão;

IV - cassação de aposentadoria ou de disponibilidade.

8 Lei. 4898/65, art. 6º, § 4º:

Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal.

[ ... ]

§ 4º As penas previstas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas autônoma ou cumulativamente.

9§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

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